quinta-feira, 26 de março de 2009

Tênis x Frescobol (metáfora interessante)

"Depois de muito meditar sobre o assunto, concluí que os casamentos (relacionamentos) são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: "Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta:
- "Voce crê que seria capaz de conversar com prazer com essa pessoa até sua velhice"?



Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construidas sobre a arte de conversar.

Scheherazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, e terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O Império dos Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer.

Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: "Eu te amo..." Barthes advertia: "Passada a primeira confissão, 'eu te amo' não quer dizer mais nada". É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: "Erótica é a alma".

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir sua cortada - palavra muito sugestiva - que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca.

Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra, pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho prá lá, sonho prá cá... Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde. Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração.

O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha, para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim..."

domingo, 8 de março de 2009

Se os homens menstruassem por Gloria Steinem




Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mundo passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele branca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.

Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pê-nis. O poder de dar à luz faz a “inveja do útero” mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis.

Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ainda ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: “Vocês deveriam estar orgulhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!”


Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de alguma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo “superior” será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo “inferior” será usado para justificar suas provações. Homens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulheres eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais “fracas’. Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, “Que nada, isso é trabalho de mulher.” A lógica nada tem a ver com a opressão.

Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não?

Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino:

Os homens se gabariam da duração e do volume.

Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.

Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os poderosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do coração, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegidos e muito a respeito das cólicas menstruais.

Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath — “Para aqueles dias de fluxo leve”.

As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquistam um maior numero de medalhas olímpicas.

Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos citariam a menstruação (”men-struação”, de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha (”Você precisa dar seu sangue para tirar sangue”), ocupariam os mais altos cargos (”Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?”), ser padres, pastores, o Próprio Deus (”Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados”), ou rabinos (”Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas”).

Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mulher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supremacia dos direitos menstruais (”O resto não passa de uma questão”) ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês (”Você precisa dar seu sangue pela revolução”).

O povo da malandragem inventaria novas gírias (”Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez”) e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:

— Cara, tu tá bonito pacas!
— É cara, tô de chico!

Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é “The Fonz”, embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hill Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais, (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de Sangue).

Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso “naqueles dias”. Diriam que as lésbicas têm medo de sangue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado.

As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres (”elas podem desmaiar ao verem sangue”).

É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disciplina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da matemática,
ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?

A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstruação.

Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato “desses seres” não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.

E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Podemos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argumentos com um masoquismo valente e sorridente. (’A Emenda de Igualdade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses : Phyllis Schlafy. “O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!”: Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da “inveja menstrual”. As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. (”Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!”) As feministas culturais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatura. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalismo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens-truariam. (”Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia”, explicariam, “é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo.”)

Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tornam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.*

A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.

Se permitíssemos.


— 1978
* Meus agradecimentos a Stan Pottinger pelos muitos improvisos incluídos neste texto.

FONTE:

STEINEM, Gloria. Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher no século XX. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 416-419.